quinta-feira, junho 07, 2007

"Torto"

A menos de vinte e quatro penosas horas do ínicio do dito 'massacre académico', achei interessante, no intervalo de uma overdose de Teoria Geral do Direito Civil, nunca esquecer (em forma de premonição, tambem) que afinal, 'não sou a única'.

«Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na tese de doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas. Mas confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como dizer isto - debruçava-se sobre a problemática da cessão dos créditos. Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei por mim teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de noventa do século passado. Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas e infindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de Direito. Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio. Mas agora, passao o período de nojo, aproveito para deixar aos meus leitores dois ou três avisos sobre o dito curso. Pois bem, trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezível das criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente dito: Sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiranias sortidas e as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocar apenas o curso, aqueles cinco penosos anos de colónia penal. Convem aliás explicar que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mas como forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica de opressão, de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima.
Não vou agora aqui sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível a princípio e se tornou depois indiferente. Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meu descontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido. Estava com sono. E em cima do estrado o monocórdico mestre dissertava sobre a "servidão de estilicídio". Eu explico: trata-se de garantir o escoamento das águas quando um vizinho não está a mais de cinco decímetros do outro. A minha vaga insatisfação com o curso tornou-se, nesse momento, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não era certamente estudar o escoamento de águas e a distância entre os prédios. que se lixasse o estilicídio. Eu queria distância era do curso.
Porque essa era a nossa faina. Engolíamos, como óleo de rícino, noções assim intragáveis durante dez infindáveis semestres. Não apenas a acção de despejo, o IRS ou a irrecobilidade do acto administrativo, assuntos minimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituição da Costa Rica. O inadimplemento culposo. A venda a retro. A inaptidão da petição inicial. As prescrições presuntivas. A substituição quase-pupilar. O fideicomisso. O anatocismo. a enfiteuse. Os vícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contrato sinalagmático. O registo das sociedades em comandita. O benefício da excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interesse desmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em todos os seus nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os infindáveis casos entre o "senhor A" e o "senhor B", que vendiam um ao outro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma, deixavam violas de gamba em usofruto, e por aí em diante. Por vezes iam mais longe: o usofruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, o processo na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris? Perguntavam, sacanas, os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber. Por esta altura todos nós queríamos era que o senhor A e o senhor B se quilhassem. Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei isto. Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto. Aguentei o Prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinhei de capa a capa catrapácios de setecentas páginas sobre a pensão de alimentos. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam nisso. Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais decentes. Como pianista num bordel.»

Pedro Mexia, in Grande Reportagem, 6.03.2004

Ossos do ofício, meus caros.

7 comentários:

Pedro disse...

Como eu vos entendo... :|

Devia aprender a tocar piano.

Rita Sem disse...

Grande texto, sim senhor... Ja agora, podiam acabar com Administrativo II, q tal, hum hum, hum? hum? =P kiss kiss

Anónimo disse...

É por estas e por outras que eu zarpei...
Boa sorte para os exames amiga!

. disse...

Engraçado, a minha rotina abraça, sempre, uma parte dedicada a tratar 'menos bem' os meus amigos de Direito. A rivalidade entre Administraçao Publica e o vosso curso cá, em Coimbra, é estonteante e tudo o que sirva para desprezar o outro é valido :) É uma competição saudavel e ler isto levou-me, de imediato, a enviar o texto a um deles...que prazer :p *

. disse...

Por falar nisso, Quarta-feira tenho o meu ultimo exame e é precisamente de Direito Administrativo :s Comecei com Constitucional e acabo com esta bela pérola. Depois, depois...depois posso vir ler-te com mais frequencia :)

Hugo disse...

para onde ker k vá tao os exames...lol

www.torradadomeio.blogspot.com

inocência perdida disse...

Tudo isto poderá ser verdade... mas a beleza de tudo é relativa... nem todas queremos ser cinderelas e muitas das que querem não podem!!
Discordo concordando do senhor que o escreveu...nao querO saber do senhor A nem do senhor B muitas vezes dao-me nos nervos, mas sou uma pessoa muito melhor chegando onde cheguei e pelo caminho do Direito!!

Relaxa Clarinha as coisas podem não correr da melhor maneira mas tens que te guiar pela essência não pela forma:)

Gosto de ti minha linda Cinderela!!